O compositor Gilberto Mendes e os 50 anos do Manifesto Música Nova Rubens Russomanno Ricciardi Clotilde Perez Ao completaR 91 anos, o compositor Gilberto Mendes – Santos (SP), 13 de outubro de 1922 – reflete sobre o cinquentenário do Manifesto Música Nova, revelando detalhes importantes sobre a participação de diversos membros do movimento musical e suas relações interpessoais e intelectuais com membros do movimento literário paulista da época, bem como as experiências internacionais. Rubens Russomanno Ricciardi e Clotilde Perez: Como foi idealizado o Manifesto Música Nova (MMN)? Você foi signatário, há 50 anos, do Música Nova, o que seria hoje um Manifesto da mesma natureza? Gilberto Mendes: Rogério Duprat foi um dos principais ou o principal articulador do manifesto Música Nova. Ele escreveu e nós concordamos com tudo e assinamos. Ele tinha forte formação em filosofia de um modo geral. E nós, quando muito, líamos Marx. Acho que não seria possível um manifesto com a mesma natureza hoje. Na atualidade, está tudo muito misturado, são muitos pontos de vista, tudo muito variado; naquele tempo não tinha muito isso. Hoje tem muita mídia junto, celebridades, uma forte indústria da cultura; mas, já na época, nosso grupo foi muito favorecido pela mídia. Jornalista gosta de causar sensação e a gente causava sensação com a música esquisita que a gente fazia. Quanto mais falavam mal da gente, mais a gente ficava famoso. E ficava famoso porque falavam mal. O contexto hoje é outro. Naquela época tinha menos coisas, mas tudo aconteceu principalmente porque andávamos com os concretistas. O concretismo foi muito forte no Música Nova (o grupo Noigandres). E nós éramos muito amigos... Eles eram amigos muito inteligentes, muito cultos, os concretistas paulistas, o Haroldo de Campos, o Augusto, mas principalmente, o Décio Pignatari. O Décio morou na Europa e era amigo do Pierre Boulez (1925-), mas também do pessoal do teatro do Jean Louis Barrault (1910-1994), Madaleine Renaud (1900-1994), que se ligava ao movimento da música nova francesa. O Décio andava com eles, acompanhava tudo; e até ajudou a vender ingressos para eles. A primeira vez que a gente foi à Alemanha com os construtivistas nós encontrávamos com todos. Durante o Festival em Darmstadt ficava todo mundo no mesmo espaço e nós cruzávamos no refeitório e nos corredores com nomes importantes. Encontrei o Stockhausen (1928-2007) saindo do banheiro! O Música Nova teve forte vínculo com a literatura, mas principalmente com a poesia concreta. Nós estávamos seguindo na música um caminho equivalente ao que eles seguiam na poesia. Nosso Manifesto foi publicado na Revista Cruzeiro (que circulou de 1928 a 1975), que era uma revista de variedades, mas a mais famosa e importante da época. Não apenas o Manifesto foi publicado, mas também entrevistas, comentários – nosso manifesto foi incentivado por eles e publicado na revista deles. Nós quisemos segui-los e daí fizemos o Manifesto; mas, realmente, quem era bom de filosofia era o Rogério Duprat (1932-2006), como tinha formação em filosofia, ele fez a estrutura básica do texto do manifesto, ainda que nós debatêssemos muito todos aqueles assuntos. RRR e CP: Em que sentido o senhor identifica as influências do Música Nova na composição musical no Brasil das décadas posteriores? GM: Eu nem queria compor, ser músico: queria ser escritor, mas tive uma grande influência do meu então cunhado, Miroel Silveira (1914-1988), que me dizia "volta para Santos e volta a estudar música". Ele e minha irmã eram amigos desde a infância e depois na juventude eles se reencontraram e se casaram. Miroel foi muito importante na minha vida. Tinha muita sensibilidade musical e me incentivava. O Festival Música Nova e o Manifesto influenciaram bastante. O Manifesto foi muito discutido na época. Foram muitos debates, por exemplo, houve um com o Marlos Nobre (1939-), no teatro de Arena em São Paulo muito relevante para o Manifesto, e como consequência desse debate teve uma polêmica no jornal a Gazeta – um vespertino em São Paulo muito importante, na época. Quem escreveu sobre o manifesto na Gazeta foi um professor de filosofia da Universidade Católica de Santos, um que queria ser músico e estudava composição com o Camargo Guarnieri (1907-1993): era o Sá Porto – e o Guarnieri que não era muito dado a Filosofia, pediu para ele escrever. E o texto foi escrito em um tom muito alto de filosofia. O texto foi bem crítico, até porque o Guarnieri estava em outra linha, o neofolclorismo, e eu respeito muito, mas a nossa posição era muito diferente, não era necessariamente contrária, mas era completamente diferente da linha mais folclorista e até nacionalista que ele seguia... Eram os anos 50, muita coisa acontecendo na Europa e nós tínhamos influência de Stockhausen e Gyorgy Ligeti (1923-2006), dos festivais de Donaueschingen e Darmstadt. E quem respondeu ao Sá Porto-Guarnieri foi o Rogério Duprat, e fez uma resposta duríssima, para acabar mesmo. E o Geraldo Ferraz (1905-1979), grande polemista e escritor de Santos, que era também o chefe do jornal A Tribuna em Santos – eu escrevia nesse jornal – quis que a resposta saísse na Tribuna, e assim fizemos. Mas eu não sou de conflito, escrevi a resposta, mas fiz um texto com muita consideração ao Guarnieri, até porque o que nós fazíamos não era necessariamente contrário a ele, era diferente. E, sabe que ele ficou meu amigo? Mas a polêmica toda ficou um pouco "anti-Guarnieri" e nós queríamos apenas contrariar a dominação hegemônica que eles tinham. Eu até quis estudar com o Guarnieri, ele perguntou se eu tinha estudado contraponto e eu disse que não; e ele queria que eu estudasse com um aluno dele antes e aí eu que não quis. Queria ter sido aluno do Guarnieri mesmo. Fui autodidata, com o Guarnieri não deu certo, com o Koellreutter (1915-2005) também não deu certo porque ele morava na Bahia, no Rio de Janeiro; e acabei tendo apenas umas poucas aulas com o Claudio Santoro (1919-1989) e com George Olivier Toni (1926-). Do Guarnieri eu guardo uma lembrança feliz porque pude conviver muito com ele já no final da vida. RRR e CP: Como você vê hoje o que se tem definido como pós-modernidade? GM: Para mim as coisas vão se modificando por si mesmas, meio naturalmente. É um movimento natural que tudo se modifique. O conceito de vanguarda, por exemplo, é uma coisa do século XX, mas que passou. O pós-modernismo, essa baboseira, vai por aí, mas o que tem de real nele é o cansaço do politicamente correto, dessas briguinhas, dessas picuinhas, dessas igrejinhas estéticas. O século XX foi um tanto intolerante e agora há mais abertura. RRR e CP: Como você vê ou posiciona John Cage no panorama da composição musical do século XX e atual? Quais foram, conforme sua visão, os grandes nomes e tendências enriquecedoras nesse campo, e como você vê a musica conceitual hoje? GM: Ela é parte integrante e importante do panorama geral da música, panorama que, se você quer puxar uma linha qualquer, é possível dar predominância àquela que você puxou... A minha natureza é de gostar de tudo que é bom, e até de música ruim, algumas eu gosto; não tenho um ideal partidarista, de quem briga com todo mundo, nunca criei inimizade com um ou com outro. Minha luta, expressa no Manifesto Música Nova e no Festival Música Nova, era apenas para ampliar as opções; participei como meio para conseguir que a nossa música fosse tocada; eu era contra o domínio que eles tinham do panorama musical da época. RRR e CP: Como você vê as perspectivas da composição musical para o futuro da música nacional e internacional? GM: Sou sempre a favor da abertura... O festival agora está mesmo em uma nova fase. Na época do seu lançamento, era tudo muito novo, a escola franco-alemã, foi um grande momento da música, altamente sofisticada e difícil, mas o pecado básico dela foi eliminar a comunicação que a música do passado sempre teve. O grande Beethoven (1770-1827), Brahms (1833-1897), Bach (1685-1750) sempre foram admirados por todos. Essa "nossa" música não chegou às pessoas, temos que aceitar isso, apenas um compositor ou outro; ela ficou afastada e esse foi o pecado básico: se afastar totalmente da comunicação e, mais ainda, eliminar totalmente a emoção musical. Não vou dizer que não tem nada de emoção, mas é uma emoção extremamente particularizada, apenas para quem está intimamente dentro, não tem aquela emoção que vem do geral, ela não se conecta em ponto algum com o popular e a música do passado sempre se conectou com o popular, mesmo porque a música popular e a música erudita, segundo Bartók (1881-1945) são uma só. RRR e CP: Você nasceu no ano da Semana de Arte Moderna de 1922. Haveria alguma simbologia ou influência no seu papel posterior na música brasileira? GM: Acredito que não; até porque uma coisa não tem ligação com a outra, mas não deixa de ser algo de que todo mundo se lembra. E porque dá "um certo charme", e eu não me oponho! Não apenas coincidi com a Semana de Arte Moderna, também com a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e ainda o lançamento do Ulysses, de James Joyce; tudo foi em 1922. |