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Revista Concerto: Caminhos da invenção

A revista Concerto publicou na edição Março de 2020 uma longa entrevista com o compositor e docente da Escola de Música da UFRJ Liduino Pitombeira. Confira abaixo a íntegra da matéria.

Liduino Pitombeira

Caminhos da invenção

Entrevista com o compositor Liduino Pitombeira

Por Irineu Franco Perpétuo

O já tradicional Festival de Música Contemporânea Brasileira, que acontece de 24 a 18 de março, em Campinas, homenageia, nesta sétima edição, dois nomes: pela música popular, o acreano João Donato; pela erudita, o cearense Liduino Pitombelia.
Professor de composição da UFRJ, Pitombeira estudou na Louisiana State University (EUA), foi laureado em concursos no Brasil e nos EUA e teve seu Ajubete Jepê Amô Mbaê gravado pelo Quinteto de Sopros da Filarmônica de Berlim. No festival, serão executadas dele várias obras de câmara, além de concertos para flauta e piano, com a Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas, regida por Victor Hugo Toro.
Em 2019, recebeu a medalha Villa-Lobos, honraria concedida pela Academia Brasileira de Música em reconhecimento a sua prolífica trajetória. Esta será discutida em congresso durante o festival, e Pitombeiro sobre ela à Revista CONCERTO.

Você concilia a atividade de compositor com a de docente.  O que significa para você ser professor? De que maneira essas duas carreiras se relacionam?
Vejo a prática composicional e o ensino da composição como atividades complementares. Ensinar composição significa, de certa forma, estar em constante atualização com o estado da arte e da pesquisa composicional. Além disso, o contato contínuo com jovens em formação e com colegas experientes são grandes fontes de atualização e intercâmbio artístico e acadêmico. Assim, quando me proponho a expor em detalhes os princípios básicos de tópicos relacionados à composição, coloco-me em constante reflexão sobre esses tópicos, com claro impacto na minha própria produção composicional. Muitas vezes, na demonstração de princípios composicionais, produzo, em sala de aula, ideias que reutilizo mais tarde em minhas próprias obras. Dois exemplos: a obra Vieux Carré, op. 188, para flauta e quarteto de cordas, foi inteiramente construída a partir da justaposição, sobreposição e transformação de fragmentos criados em sala de aula. Mais recentemente, a obra Aulos, op. 246, para quarteto de saxofones, foi composta e editada em sala de aula, ao demonstrar para os alunos conceitos relacionados à Escola Polonesa de Massas Sonoras. Essa obra, ao ser concluída foi executada em sala de aula, em parceria com o grupo de pesquisas Performance Hoje (PPGM-Universidade Federal do Rio de Janeiro), liderado pelo professor Pedro Bittencourt.

Você é um estudioso das relações entre música e matemática. Como essa preocupação teórica influencia na sua obra?
Embora eu não tenha educação formal em matemática, venho ao longo dos últimos dez anos me familiarizando com diversas possibilidades de diálogo entre essas duas áreas, que, outrora já pertenceram a um mesmo corpo teórico. Lembremos que o quadrivium integrava, na Idade Média, em um mesmo corpo pedagógico, a aritmética, a geometria, a astronomia e a música, já que todas tratam, respectivamente, do número: puro, estático, dinâmico e aplicado. Vale salientar que o século XX assistiu a uma reaproximação entre essas duas disciplinas irmãs. Estruturas matemáticas estão claramente presentes em estruturas musicais. Exemplos notáveis são a Teoria do Particionamento Rítmico, de Pauxy Gentil-Nunes, que se estabeleceu pela convergência entre a Teoria Textural de Berry e a Teoria das Partições de Euler; a Teoria dos Conjuntos de Classes de Notas, já de amplo conhecimento no ensino da teoria e composição no Brasil (em grande medida graças aos esforços do professor Bordini e da Escola de Música da UFBA); procedimentos estocásticos, cadeias de Markov, álgebra booleana e teoria dos jogos, tópicos centrais na obra Música Formalizada de Xenakis. De fato, já existem graduações específicas em música e matemática, em diversas universidades da Inglaterra (University of Birmingham , Royal Holloway University of London  e University of Edinburgh , por exemplo). Em minhas obras construídas como resultado da pesquisa que desenvolvo na pós-graduação (Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro) esse diálogo com a matemática está bastante presente, é parte integrante do planejamento composicional. Evidentemente, essas obras representam apenas parte da minha produção. Neste período letivo de 2020.1, nosso grupo de pesquisas MusMat (https://www.musmat.org), responsável pelo MusMat – Brazilian Journal of Music and Mathematics, está organizando uma disciplina com quatro matemáticos (UFRJ e UFF), na qual será estudado em detalhes o livro de Xenakis, intitulado Música Formalizada. Essa leitura certamente produzirá, em todos os participantes do curso, muitas ideias e motivações para novas obras.

Você se considera um compositor nacionalista? Acha que sua produção pode ser colocada como continuadora do nacionalismo musical brasileiro? Quais seriam suas principais influências como compositor?
Embora eu já tenha usado o termo “nacionalismo” em entrevistas anteriores , atualmente prefiro dizer que minha produção composicional agrega diversos elementos da cultural local (especialmente do Nordeste brasileiro) e da tradição oral e popular brasileira, sem negligenciar o diálogo com práticas contemporâneas atuais (até por conta de minha atividade acadêmica e docente). Devo acrescentar que não sei até que ponto é possível desvincular muitas estéticas contemporâneas das culturas de seus países de origem. Cito alguns exemplos: Escola Polonesa de Massas Sonoras (Penderecki, Lutoslawski), música espectral francesa (Grisey, Murail), ‘new complexity’ inglesa (Ferneyhough, Birtwistle, Finnissy), indeterminismo estadunidense (Cage). Talvez o discurso – que já ouvi algumas vezes em conversas com colegas compositores – que busca diminuir a importância estética da produção brasileira “nacionalista” (como a de Lacerda, Guarnieri e Villa-Lobos), e que tenta demonizá-la para se precaver de um possível risco de hipervalorizarão de elementos nacionais (que poderia nos levar a situações indesejadas), seja exatamente uma estratégia de promover a expansão de outros “nacionalismos’”, esses mais cult e velados, por serem oriundos do hemisfério norte. Isso merece profundas reflexões no meio composicional, em encontros específicos da área. Quanto às minhas principais influências, elas são, especialmente nas fases iniciais, Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti, compositores cuja obra venho acompanhando desde o final da década de 1970. No campo da música de concerto, creio que Bartók, Webern e Hindemith são influências presentes. Mais recentemente tenho apreciado a obra de Henri Dutilleux, Kaija Saariaho, Wolfgang Rihm e Thomas Adès.

Em fevereiro, no Festival Internacional de Música de Câmara Villa-Lobos, em Pasadena (EUA), ocorreu a estreia de sua Brazilian Landscapes no 19, para quarteto de violoncelos. Brazilian Landscapes é para você uma série como, digamos, os Choros de Villa-Lobos e Camargo Guarnieri? Em caso afirmativo, quais seriam as características dessa série? Analogamente, suas Serestas também podem ser consideradas uma série?
Brazilian Landscapes e Serestas são duas séries com as quais venho trabalhando há quase vinte anos. Atualmente cada série tem vinte obras, a maioria dividida em movimentos, para diversas formações instrumentais. Na série Serestas utilizo predominantemente gêneros da tradição oral brasileira, algo na linha que Osvaldo Lacerda fez com as Brasilianas. Algumas formações inusitadas são a Seresta no 7, para orquestra sinfônica (tendo em vista que a série é predominantemente de câmara), a Seresta no 6, para fagote e fita magnética, e a Seresta no 17, encomendada por Alex Klein para seis oboés, tocados por dois oboístas. Atualmente, estou trabalhando na Seresta no 21, para viola e harpa. Brazilian Landscapes, por sua vez, faz referências a elementos brasileiros, não necessariamente danças e gêneros de tradição oral (como nas Serestas). Assim, por exemplo, a no 2 faz referência a dois vilarejos da minha cidade natal (Russas, CE), um deles onde nasceu meu pai e o outro onde nasceu minha mãe. Procuro expressar as características contrastantes desses dois locais. Já na no 7, o contraste se dá entre a caatinga nordestina e o morro carioca. A primeira foi premiada duas vezes (pela Louisiana Music Teachers Association e, em seguida, pela Music Teachers Nacional Association, nos Estados Unidos), a segunda foi vencedora do Inter-American Music Awards e publicada pela Peters. A no 6 recebeu o primeiro lugar na Kean University Composition Competition, o que me permitiu mais tarde compor diversas obras para o Concert Artists Program dessa universidade estadunidense. A no 9 também foi premiada nos Estados Unidos (Sonic Inertia Ensemble Composition Competition). Por último, a no 12, encomendada por Michel de Paula e Luiz Mantovani, teve estreia no Carnegie Hall, em março de 2012.

No FMCB, você será homenageado junto com João Donato. Você tem alguma afinidade com ele ou sua música? Qual a sua ligação com a música popular em geral?
João Donato é um dos ícones da nossa música popular e instrumental, ao lado de Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Chico Buarque, Gilberto Gil, Tom Jobim, entre outros. Gosto bastante da música dele (em especial A rã, Minha saudade, A paz, Plantio de amor e Bananeira). Como venho da música popular (sobretudo da música instrumental) e trabalhei em estúdio de gravação criando jingles e arranjos, tenho uma ligação muito forte com essa estética. Meu primeiro instrumento foi o violão – logo em seguida, o contrabaixo elétrico. Integrei bandas de música instrumental na década de 1980, em Fortaleza, antes de enveredar pela música “antiga” (com o grupo Syntagma, do qual participei de 1986 a 1998). 

Além do FMCB, quais os principais acontecimentos de sua carreira de compositor previstos para os próximos meses (performances, encomendas, estreias, gravações, etc.)?
Estou trabalhando atualmente na conclusão da Seresta no 21, encomendada para o projeto de mestrado da violista Clara Santos, no PROMUS/UFRJ; em uma obra para a Banda Sinfônica Paulista; em uma obra para sax barítono e piano, encomendada pelo saxofonista Giancarlo Medeiros; e no Concerto para Piano e Orquestra no 3, encomendado pela pianista Miriam Grosman e pelo maestro Thiago Santos. Espero concluir ainda esse ano a gravação da minha obra completa para piano, que está sendo realizada pela minha esposa, a pianista Maria Di Cavalcanti.

Você teria algum conselho a dar aos jovens que estão começando a carreira na composição?
Um primeiro conselho é tratar o estudo da composição como um instrumentista trata o estudo de seu instrumento, ou seja, prática composicional diária. Priorizar o trabalho em obras que serão executadas, seria uma segunda recomendação. Além de ser uma boa motivação composicional, isso pressupõe um diálogo com o intérprete, o que se configura como um verdadeiro laboratório. Por último, creio que o contato com a performance e com outras artes, com a ciência, com a filosofia e com o que se passa no mundo amplia as possibilidades composicionais. Afinal, a composição é uma atividade cultural que não se dá no vácuo, mas é plenamente inserida na sociedade.

Correspondência

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