176 ANOS FORMANDO MÚSICOS DE EXCELÊNCIA

A luta e música de Spírito Santo: uma história de Notório Saber

No dia 15 de maio, tendo por início da cerimônia o horário das 16:30h, no Salão Leopoldo Miguéz da sua Escola de Música, a Universidade Federal do Rio de Janeiro fará a outorga do  título de Notório Saber a Spírito Santo (Antonio José do Espírito Santo).

Da concessão desse título, que tem por fundamento legal o Parágrafo Único do Artigo 66 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional do Brasil- LDB- é importante tornar público que, ao completar, em agosto do ano corrente 175 anos de existência e de transmissão do ensino musical em nosso país, foi a primeira vez que a Escola de Música, por meio do memorial contido no Processo de Número 23079.213255/2022-46  solicitou ao Conselho Universitário da UFRJ,  seu órgão máximo de deliberação,  que o título fosse concedido a uma pessoa.

  Nadejda Costa
 
  
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Como é que você vai conhecer uma sociedade e procurar transformá-la, se você está trancado em uma redoma de vidro? O saber vem do céu, da Europa?

Spírito Santo

É igualmente importante assinalar que ao passar a posse de Spírito Santo esse título, que possui nível de equivalência às suas titulações formais como, por exemplo, o doutorado, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a mais antiga instituição do ensino musical no Brasil, proclama sua constatação ao conhecimento que foi por ele sistematizado sem a orientação de professores e, portanto, marcado pela sua ausência nas salas de aulas e centros de pesquisa das universidades brasileiras.

Mas, o curioso a respeito desse fato é que, antes mesmo dessa cerimônia, esse conhecimento já se fazia presente na própria comunidade acadêmica da UFRJ, assim como nas comunidades acadêmicas da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG-, na da Universidade de São Paulo- USP-, na da Universidade Federal da Bahia-UFBA-, na da Universidade Federal Fluminense UFF-, através da obra que tem por título Do Samba ao funk do Jorjão: ritmos, mitos e ledos enganos no enredo de um samba. Obra que se fez referência para que teses de doutorado, dissertações de mestrado, artigos científicos e capítulos de outras obras pudessem ser elaborados nos mais diferentes campos do conhecimento: Música, História Social, Educação, Dança, Ciência da Informação etc.

Sobre a trajetória da constituição do conhecimento de Spírito Santo que, além de escritor, pesquisador da cultura brasileira e/ou africana é também músico, lutier, ativista anti-racista, e multiinstrumentista, são três os fatores que de forma irrestrita se entrelaçam e merecem ser destacados. 

Um deles foi entender ao se interessar pela música africana, quando ainda muito jovem, que nela existiam sons impossíveis de serem executados no Brasil pela ausência dos respectivos instrumentos. O outro fator de importância fundamental foi o de ter sido aluno de Guerra-Peixe e com ele ter aprendido o que é uma pesquisa de campo e sua importância. No terceiro fator, mesmo que em ordem cronológica distinta, dois fatos contribuíram para a adoção de uma visão de mundo que impulsionaram o seu fazer e seu vivenciar o mundo: sua prisão na Ilha Grande durante a ditadura militar no Brasil e a experiência adquirida com o fato de ter morado na Europa.

Para enveredar no ofício de músico, como autodidata que sempre foi, fez uso de metodologias diversas: pesquisou em gravuras do século XIX, estudou obras raras e dispersas de pesquisadores que registraram instrumentos musicais africanos, entre os quais Alexandre Rodrigues Ferreira e Joaquim Candido Guillobel, além de consignar por escrito memórias de diferentes pessoas. E, junto a essa pesquisa da música africana, nos anos de 1970, foram três as referências que o abasteceram de inspiração no empreendimento da fabricação de instrumentos.

A primeira delas, Walter Smetak, um tcheco que se instalou em Salvador, fabricando instrumentos musicais de cordas; a outra, o etnomusicólogo  chamado Andrew Tracey que com o pai, Hugh Tracey fundou  em Soweto uma fábrica de lamefones e a terceira referência, o Uakti, grupo brasileiro de música instrumental conhecido por utilizar instrumentos musicais não convencionais.

 Da prisão desse homem negro, que aconteceu em período muito anterior àquele que como músico chegou a Europa e lá viveu trabalhando, e, é agora agraciado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro com um título que raramente é por ela outorgado, é importante assinalar que as décadas contidas entre os anos de 1969 e 1989 não impediram que sua consciência e, consequentemente, sua visão de mundo fossem alteradas de forma muito semelhantes nas duas ocasiões.

Na raiz de tal modificação de sua visão de mundo, Spírito Santo relatou que, a oportunidade de conviver com pessoas de classes sócio-econômicas diferentes à sua durante o tempo em que esteve preso e naquele que viveu na Europa fez com que frente aos desafios impostos, o seu olhar para o mundo fosse ampliado de tal forma que sua crença na educação se fortaleceu e em si mesmo passou a enxergar a obrigação de criar possibilidades de saídas para os jovens sitiados em contextos contaminados pelas drogas e tráfico.

E que foi com essa alteração de consciência que, a partir de sua prisão, adotou o ideário das lutas contra o racismo e, em sua volta ao nosso país passou a estabelecer diálogos com doutores de diferentes áreas de conhecimento do Brasil e do exterior, sendo por eles considerado nas trocas de saberes, o que terminou por gerar a já citada obra que trata da possível história da música africana no Brasil.

Foi também amparado por essa visão de mundo adquirida no períodos citados que, após a realização de um trabalho em uma peça teatral com a atriz Zezé Mota na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, apresentou ao Edital Comunidade Solidária a sua proposta da Oficina Musikfabrik e com ela, quando ainda as cotas raciais não haviam sido instituídas no ensino superior, muitos de seus alunos, que lá receberam os ensinos de luteria e etnomusicologia, puderam também constatar a partir das interações vivenciadas com estudantes da Zona Sul do Rio de Janeiro que,  em outros contextos se faziam presentes oportunidades que em muito divergiam daquelas nos quais se encontravam sitiados. E a partir dessa compreensão terminaram o segundo grau e ingressaram em universidades.

O ímpeto adquirido na Europa de fortalecer sua pesquisa com o estudo de outros elementos que não só os instrumentos musicais, mas também de outras áreas do saber, como por exemplo a antropologia, terminou por fazer com que fosse convidado a coordenar um grupo de artistas no Vale do Paraíba do Sul em um belíssimo projeto de Darcy Ribeiro, onde deu início à formação de  um rico e precioso acervo de gravações orais e de filmes que, nos dias atuais, por meio de um processo que se encontra bem adiantado será doado ao Arquivo Nacional.

As pesquisas, que tiveram seu prolongamento nesse último período citado, deram a ele a certeza de que não só a escravidão, não só a cultura africana, mas também, a cultura geral brasileira possuem relações muito fortes com as malhas dos rios. Daí, desde então, está desenvolvendo uma tese que tem por título Mídias Líquidas, já que pela ausência de estradas no passado os fatos culturais do continente africano e os do Brasil foram expandidos nas margens dos cursos dos rios.

Ao responder sobre ter sido ou não doloroso o caminho que percorreu de forma solitária para aquisição de seu conhecimento, disse que sempre foi movido por uma compulsão natural e muito prazerosa na busca de informações precisas que sempre superou as dificuldades provocadas pela ausência de patrocínio.

 

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