EM apresenta o Cancioneiro de Guerra-Peixe

Como parte das comemorações do centenário de nascimento de Guerra-Peixe (1914-1993), a Escola de Música programou para junho dois recitais integralmente dedicados à obra vocal do compositor. Um evento inédito que oferece ao público carioca a oportunidade de apreciar uma faceta importante da produção de um dos maiores autores brasileiros. Com entrada franca, os espetáculos acontecem dias 9 e 10, às 18h30, na Sala da Congregação.

 

O site da EM ouviu o professor Inácio De Nonno, coordenador do evento e, assumidamente, um apaixonado pela obra do compositor. Entusiasmado, falou sobre o cancioneiro de Guerra-Peixe, objeto de suas pesquisas, e revelou detalhes do que o público irá ouvir. Os recitais são uma iniciativa do Departamento Vocal e contam com a participação de alunos do bacharelado em canto – jovens talentos orientados pelos docentes Andréa Adour, Homero Velho, Juliana Franco, Marcelo Coutinho, Ricardo Tuttmann e Veruschka Mainhard, além do próprio De Nonno. Leia, a seguir, a entrevista.

 

Professor, grande parte da sua produção acadêmica discute a obra de Guerra-Peixe. Quando surgiu esta paixão pelo compositor?

 Foto: Ana Liao
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Em 1991, quando buscava um bom tema para desenvolver a pesquisa de mestrado, me dei conta que a obra vocal de Guerra-Peixe estava lá, quase toda manuscrita e intocada, a espera de alguém que se habilitasse a investigá-la. Tive acesso a esse o material graças a generosa disponibilidade da Jane Guerra-Peixe, sobrinha do autor. Àquela altura já tinha intimidade com seus dois grandes ciclos para voz e instrumentos: "Sumidouro" (cinco peças para voz, violino, violoncelo e piano), que estreei na Bienal de Música Brasileira Contemporânea de 1989, e a "Drummondiana" (sete canções para voz e orquestra) que havia gravado em CD.

Estas duas obras foram, as que escolhi para focalizar na minha dissertação. Já no doutorado, tomei fôlego para enfrentar toda produção vocal remanescente. Foi um grande esforço, digitalizai todo o material manuscrito, contextualizei, analisei e estabeleci propostas de interpretação para cada uma de suas canções e ciclos de canções, perfazendo um total de 65 peças. 

 

Qual a importância de Guerra-Peixe para a música no Brasil?
A obra de Guerra-Peixe fala por si. Há vários sites em que os interessados podem conhecer um pouco mais sobre sua via e sua sobre sua produção. Muitas dissertações de mestrado, teses de doutorado e artigos acadêmicos abordam a sua composição. Já sua obra sinfônica, cabe destacar, faz parte do repertório de todas as grandes orquestras da Europa e dos EUA, e testemunha a inspiração, a grandeza e, sobretudo a brasilidade (sem pieguice) deste gênio da história da música universal.

E a obra vocal?
Guerra-Peixe foi muito consciente de todos os seus processos criativos. Tanto que deixou, de próprio punho, um memorial intitulado "Principais Traços Evolutivos da Composição", onde anotou, composição a composição, os temas utilizados, as circunstancias que o levaram a escrever aquela peça, e por aí vai.

Em entrevista concedida a mim, por ocasião da pesquisa de mestrado, Guerra-Peixe se auto definiu com um compositor que passou por três fases. Na primeira, que chamou de "dodecafônica", abraçou o mundo do serialismo, por conta da influência de Hans Joaquin Kollreutter – célebre compositor, professor e musicólogo de origem alemã com quem estudou. Na segunda, a sua fase "nacionalista", Peixe abandona essas experiências e se volta para o folclore brasileiro. Com intenção de estuda-lo in loco, muda-se, em 1949, para Recife, cidade em que reside durante dois anos. A última fase, que chama de "Síntese Nacional", é na verdade resultado da fusão de tudo que lhe tocou durante a vida em termos estéticos e que processou com absoluta genialidade e inspiração.

A obra vocal de Guerra-Peixe pode ser muito entendida dentro desses três "módulos", por assim dizer. As suas primeiras canções ("Provérbios" nº 1, 2 e 3, "Felicidade", por exemplo), foram compostas sob influência serial e atonal. Já toda uma série de canções e ciclos escritos a partir de 1950, quando o compositor retornou do Recife, têm por sua melodia, pelo ritmo, pelo texto ou pelos três elementos misturados, forte "cor" regionalista. "Trovas Alagoanas" (cinco canções para voz e piano) e "Trovas Capixabas" (cinco canções para voz e piano) são, para mim, verdadeiros marcos desta sua fase.

E a terceira fase?
Na minha opinião, é nela que se estabelece o compositor maduro, sutil, sofisticado. Em obras como "Cânticos Serranos" (1, 2, 3, e 4), Guerra-Peixe deixa fluir uma veia neorromântica, escolhendo textos que se referem às questões e às angústias da existência, usando e abusando do estilo declamativo, alternando com harmonias e ritmos marcantes, que vão sublinhar, com absoluta adequação e oportunidade, à situação dramática.

 

Quais as características de Drummondiana e Sumidouro, os dois grandes ciclos para voz e instrumentos de Guerra-Peixe?
Independentemente de seu valor musical intrínseco, essas duas obras se destacam pelo fato de nelas Guerra-Peixe utilizar um maior número de instrumentos para formar um conjunto de câmera, como é o caso do Sumidouro, para voz, violino, violoncelo e piano, com cinco movimentos, e escritas sobre poemas de Olga Savary. Drummondiana, com duração de cerca de 20 minutos, é sua obra de maior fôlego: sete canções para voz e orquestra sinfônica, a partir de poemas de Carlos Drummond de Andrade.

 

O que o público pode esperar?
O que vai ocorrer nos dias 9 e 10 de junho é algo absolutamente inédito. Simplesmente a totalidade da obra vocal (excetuando-se os dois ciclos mencionados anteriormente) de um compositor da importância de Guerra-Peixe será apresentada. Será também a primeira audição da canção "Felicidade", para canto e piano, que o próprio autor considerou fora de catálogo por ter perdido o manuscrito, e que foi posteriormente resgatada, será apresentada pela primeira vez em público.

 

O público terá, ainda, a oportunidade de ouvir em um só bloco os Cânticos Serranos 1, 2, 3 e 4, (todos a partir de textos de poetas petropolitanos). Na minha opinião, um dos pontos mais altos em termos de sofisticação a que chegou a música de câmera brasileira. Os intérpretes serão os alunos do curso de bacharelado em canto da EM, acompanhados ao piano pelos nossos profissionais e com participação especial do professor Fabio Adour ao violão.

 

Como está a organização do evento?
Como coordenador do evento fiquei encarregado de distribuir todo o material (partituras), não sem antes me reunir com cada professor do departamento, para que as obras estivessem adequadas ao intérprete. Em alguns casos houve a necessidade de transpor (mudar a tonalidade) as canções, para se ajustarem ao registro vocal do aluno ou aluna selecionado para cantá-la. Pude contar, quero destacar, com a adesão total e generosa dos meus colegas de departamento, que com a maior disponibilidade e empenho preparam seus alunos para engrandecer um repertório que necessita urgentemente ser divulgado e, sobretudo, valorizado.

estrela SERVIÇO
Dias 9 e 10 de junho, 18h30, na Sala da Congregação da Escola de Música da UFRJ. Rua do Passeio 98 – Lapa.