176 ANOS FORMANDO MÚSICOS DE EXCELÊNCIA

Morre Mercedes Reis Pequeno, pioneira na biblioteconomia musical

Faleceu ontem (03/08), aos 94 anos, Mercedes Reis Pequeno, pioneira da biblioteconomia musical brasileira. Nascida em 08 de fevereiro de 1921, filha de Pedro Moutinho dos Reis Filho e Maria Olympia de Moura Reis, professora, trabalhou com Villa-Lobos na implantação do ensino de música nas escolas primárias. Diplomada pela Escola de Música da Universidade do Brasil, em 1937, colaborou na Revista Brasileira de Música, a convite de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, de 1940 a 1941. Completou o curso de Biblioteconomia do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) e, em 1942, ingressou, por concurso, na carreira de bibliotecário do MEC - Instituto Nacional do Livro (INL), trabalhando com Augusto Meyer
 Foto: Ana Liao
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 Mercedes Reis pequeno em 2010, durante inauguração da Sala Cleofe Person de Mattos da Biblioteca Alberto Nepomuceno (BAN).  
Convidada pela União Pan-americana, atual OEA, exerceu, de 1947 a 1949, a função de assistente do musicólogo Charles Seeger, então diretor da divisão de música da entidade. De volta ao Brasil, em 1951 iniciou o trabalho de criação e organização da Divisão de Música da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, graças ao apoio do então diretor da Biblioteca, o escritor Eugênio Gomes, e à compreensão do diretor do INL, construindo uma das mais importantes bibliotecas de música da América Latina. Em 1953, casou-se com o jornalista, linguista e violoncelista Evandro Moreira Pequeno. Chefiou a Divisão de Música até 1990, quando se aposentou. Durante sua gestão organizou e apresentou inúmeras exposições comemorando efemérides musicais nacionais e estrangeiras, sendo que dezoito com catálogos impressos, focalizando a vida e a obra de compositores: José Maurício Nunes Garcia, em 1967; Francisco Braga, em 1968; Alberto Nepomuceno, em 1964; Ernesto Nazareth, em 1966; Glauco Velásquez, em 1964; Beethoven, em 1970; Mozart, em 1956 e 1991; Milhaud, em 1970 e ainda Música no Rio de Janeiro Imperial, em 1962, I Decênio da Divisão de Música e Arquivo Sonoro (DIMAS) e Três Séculos de Iconografia da Música no Brasil, em 1974, entre outras. Ministrou cursos de organização de bibliotecas de música e participou de vários congressos da Associação Internacional de Bibliotecas, arquivos e centros de documentação de música (AIBM). Como vice-presidente desta associação, de 1965/74, colaborou em vários projetos da entidade, destacando-se o RISM (Répertoire International des Sources Musicales) e RILM (Répertoire International de Litterature Musicale). Foi membro correspondente do Boletin Interamericano de Música publicado pela OEA, Washington, D.C., de 1950/73. Recebeu vários prêmios e distinções, como o Prêmio Paula Brito, em 1974; Prêmio Estácio de Sá, em 1977; Medalha Biblioteca Nacional, em 1990; Medalha Museu da Imagem e do Som-RJ, em 1990; Medalha da Societé d'encouragement au progrès-Paris, em 1993. Membro da Academia Brasileira de Música desde 1994, onde coordenou e implementou o projeto Bibliografia Musical Brasileira para dar continuidade ao trabalho original desenvolvido com Luiz Heitor Corrêa de Azevedo e Cleofe Person de Mattos. Mercedes Reis Pequeno ocupava a cadeira no 7 da Academia Brasileira de Música, que tem como patrono Francisco Manoel da Silva. 

 

Reproduzimos a seguir a longa entrevista que Dona Mercedes concedeu, em 2010, a RBM.  Na matéria, de autoria de Maria Ceclina Machado, ela fala, com a paixão de sempre, de sua vida e de seu trabalho. 

 

Mercedes Reis Pequeno, pioneira na biblioteconomia musical*

 

Maria Celina Machado 

 

Mercedes Reis Pequeno foi aluna de piano da Escola de Música da então Universidade do Brasil, hoje UFRJ. Foi o encontro com Luiz Heitor Corrêa de Azevedo que a levou para a área da pesquisa. Com Charles Seeger, na Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington (EUA), descobriu que queria, de fato, unir música e biblioteca. Em sua trajetória, “garimpou” preciosidades, como diz, e as colocou ao alcance de todos. Fundamentada em uma formação sólida, fez um trabalho ainda maior, de pesquisa e edição de obras importantes, considerado extraordinário por todos. Na entrevista, a seguir, fala de uma história que incluiu partilhar da confiança de mestres, colaborar com a Biblioteca Alberto Nepomuceno e com a Revista Brasileira de Música. Mas, sobretudo, e pela primeira vez, conta como criou e organizou a Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional – aquela que podemos chamar de “a menina dos seus olhos”. 

 

Revista Brasileira de Música (RBM): Dona Mercedes, a sra. se formou em piano pela Escola de Música, na época Instituto Nacional de Música, e depois disso se interessou por biblioteconomia. Como foi esta trajetória?

Mercedes Reis Pequeno (MRP): Em 1938, recém-formada na Escola, tive oportunidade de assistir à defesa de tese de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo para professor da cadeira de Folclore. Minha vida até então era o piano, mas me interessei pela matéria e fui falar com ele, me candidatei a ser sua aluna. Luiz Heitor gostou da ideia e daí nasceu um relacionamento muito bom entre nós e, ainda com a Cleofe Person de Mattos, que também foi da primeira turma de Folclore da Escola.

 

 Foto: Arquivo de Mercedes Reis Pequeno
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 Mercedes Reis Pequeno com Eulina de Nazareth e foto do pai

RBM: Nessa época, o professor era bibliotecário?

MRP: Sim, Luiz Heitor começou como bibliotecário e depois fez o concurso para professor de Folclore, que era matéria inédita na Unidade. Sabe qual era a banca?

 

RBM: Qual?

MRP: Mário de Andrade, Andrade Muricy, Renato Almeida, Brasílio Itiberê e o diretor da Escola, como presidente.

 

RBM: Como exatamente a sra. começou a se interessar pela pesquisa?

MRP: Luiz Heitor recebeu convite para fazer a parte de música do Hand-book of Lesson American Studies, importante publicação norte-americana. E nos convidou, a mim e a Cleofe, para participarmos. Foi a semente. Eu, que nunca tinha posto à prova minha capacidade de pesquisa, me interessei demais pelo assunto. O trabalho se desenvolveu de tal forma que extrapolou muito o programado pelo Hand-book. Luiz Heitor teve, então, a ideia de transformar o resultado numa Bibliografia Musical Brasileira. Ficamos nós três no projeto – Luiz Heitor dirigindo, Cleofe e eu fazendo o levantamento, sob orientação dele. Naquela época, não se falava em etnomusicologia. Era folclore. E para mim foi um campo inteiramente novo, que me fascinou e mudou o rumo da minha vida.

 

RBM: O que ocorreu depois?

MRP: Terminada a pesquisa, em parte por indicação de Luiz Heitor, tive um convite, do adido cultural norte-americano Carleton Sprague Smith, para trabalhar na União Pan-Americana, que depois se transformou na OEA. Isso foi em 1947 e até 1949 trabalhei, em Washington DC, com Charles Seeger, que chefiava a seção de música da Biblioteca da União Pan-Americana. O convívio diário com aquele grande musicólogo, durante dois anos, foi decisivo e percebi: “quero trabalhar em biblioteca e música! Era o que eu fazia lá”.

 

RBM: E como foi a volta ao Brasil?

MRP: Terminado o prazo, retornei ao país já bibliotecária concursada do Instituto Nacional do Livro, cujo diretor era o grande escritor gaúcho Augusto Meyer, e que funcionava no mesmo prédio da Biblioteca Nacional. Ocorreu – em conversa com Meyer, que era também um amigo, além de chefe, e na presença de outro intelectual importante, o Eugênio Gomes – que externei a minha vontade de garimpar o material de música da Biblioteca Nacional. Por sorte, imagine, pouco tempo depois, o Eugênio Gomes foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional.

 

RBM: Tudo conspirou a favor...

MRP: Tudo. Sabendo do meu interesse, felizmente, logo que assumiu a direção da Biblioteca, Eugênio me convidou: “a sra. quer por em prática o que está na sua cabeça?” Respondi: “eu não quero outra coisa!”. Daí em diante, tive inteira autonomia e passei a trabalhar para a Biblioteca Nacional, mas como funcionária do Instituto do Livro. Isso ocorreu porque houve compreensão destes dois grandes intelectuais, que gostavam de música e aos quais sou muito grata.

 

RBM: Foi quando surgiu a Seção de Música?

MRP: Ainda era um sonho, não existia nada. Mas comecei, dedicadamente, a trabalhar com a coleção Thereza Cristina Maria, que era de Dom Pedro II e que por exigência do imperador recebeu o nome de sua mulher. O acervo foi comprado pelo Governo Federal. Era uma documentação enorme e eu me interessava particularmente pela Coleção da Imperatriz Leopoldina. Intuía que a mulher de Dom Pedro I, arquiduquesa da Áustria, vindo de Viena, na ocasião “a capital musical da Europa” e tendo estudado música, certamente teria trazido muita coisa importante.

 

RBM: Sua avaliação se confirmou?

MRP: Sim, encontrei primeiras edições de muitos compositores que eram famosos na época. Alguns, hoje, são inteiramente desconhecidos, mas a pesquisa tinha que ser feita de prateleira em prateleira, porque o acervo havia sido incorporado à Coleção Thereza Cristina Maria, mas não tinha sido catalogado nem sequer localizado. Eu ia puxando e encontrando um Mozart, um Beethoven, Haydn… Fascinante! Um trabalho de garimpeiro!

 

RBM: A sra. trabalhou sozinha?

MRP: Sim; não havia, então, alternativa. E era difícil porque tinha que procurar partitura por partitura, livro por livro. Fui juntando o material e começando a me alojar na galeria do quarto andar da Biblioteca Nacional. No começo não tinha nem porta.

 

RBM: A sra. foi desbravando…

MRP: Eu sentia que estava fazendo alguma coisa que seria útil. E terminada a Coleção Thereza Cristina Maria, que ocupou o quarto andar inteiro, passei para o sexto, no mesmo prédio. Era uma “terra de ninguém”, uma área imensa e completamente abandonada, um depósito. Tinha sido o local onde esteve instalada a Biblioteca Fluminense, que depois foi embora, e ficou aquele vão enorme e o material pelo chão. Aí já não se tratava de garimpo, mas de capina! E encontrava tesouros como a Coleção das Obras Completas de Mozart – que, aliás, não eram completas, mas uma edição famosa, bonita, em 28 volumes. Chegaram aqui, digamos, 20, que estavam no sexto andar, sem encadernação. Outros se extraviaram. Imagina minha satisfação quando depois encontrei e completei os 28? O mesmo ocorreu com os libretos de ópera.

 

RBM: Como?

MRP: Havia a coleção da Real Biblioteca de Portugal, que também viera para o Brasil e incluía folhetinhos de “Drama per Musica”, do século XVIII, em perfeito estado e guardada em pastas de papelão. Uma coleção preciosa! Foi feito um levantamento por um musicólogo italiano, Claudio Sartori, que publicou o Libretti Italiani em oito volumes, uma obra gigantesca. E o Brasil colaborou. Depois que nós já tínhamos estabelecido a Seção de Música, soubemos da pesquisa e mandamos o levantamento de todo esse material. Inclusive havia uma ou duas peças únicas.

 

RBM: O que mais encontrou no sexto andar?

MRP: Pilhas de música amarrada, recebidas em decorrência da lei do Depósito Legal. A Bevilacqua era uma grande loja de música do Rio de Janeiro e enviava a sua parte, religiosamente. Mas ficava lá, jogada. Isso também me deu um cabedal enorme de música popular da época, música de salão – valsas, polcas –, muita coisa.

 

RBM: O que a sra. fez quando saiu do sexto andar?

MRP: Fui para o Setor de Manuscritos e fiz a mesma coisa. Foi lá que eu encontrei uma peça de Leopold Kozeluk, que tinha sido professor da Dona Leopoldina. Era um concerto manuscrito autografado por ele e dedicado à Imperatriz – uma peça única, mesmo o pesquisador que tinha feito o catálogo da obra do compositor não sabia da existência. Eu comuniquei a ele. E aí fomos caminhando, organizando, guardando. Era uma coleção desigual. Então surgiu, em 1953, a biblioteca de Abraão de Carvalho, que é um marco da Seção de Música.

 

RBM: Como era?

MRP: Conheci pessoalmente Abraão Oliveira de Carvalho, um bibliófilo, que gostava de música e se dedicou totalmente a construir essa biblioteca, muito rica em obras raras, principalmente em teoria da música do século XVIII, e também com uma coleção de manuscritos. Ele se comunicava com antiquários ingleses e também comprava coleções particulares. Sua biblioteca foi comprada pelo Governo Federal, depois de muita luta, ainda no tempo de Eugênio Gomes.

 

RBM: Qual era a questão?

MRP: Problema de dinheiro. Entretanto, o acervo já estava alojado e encaixotado nos porões da Biblioteca Nacional, porque Abraão fora obrigado a se mudar e não tinha outro lugar para colocá-lo. Durante algum tempo, a Divisão de Aquisição teve que se concentrar apenas na Coleção. Eram por volta de 19 mil peças: muitos livros, partituras, iconografia e também programas de concertos, do Teatro Lírico, que existiu no Largo da Carioca, do Theatro Municipal, da Cultura Artística – uma sociedade muito importante na vida musical do Rio de Janeiro, durante anos. Era um tipo de material diferente e nos levou a encarar o problema do modo de arquivamento.

 

RBM: Como assim?

MRP: As seções da Biblioteca Nacional são, em geral, organizadas por “suporte”, como é chamado hoje: iconografia, manuscritos, obras raras. Em vista dessa diversidade de material, a Música passou a ser a única por assunto. Até hoje é assim. Nossa ideia foi reunir tudo num local só. Do contrário, o musicólogo, o estudante, teria que ir de ponta a ponta para localizar manuscritos, periódicos e sem ajuda de quem conhecesse especificamente o assunto.

 

RBM: Então a sra. criou um tipo de organização diferente na Biblioteca Nacional. E como foi depois?

MRP: As coisas ficaram nesse espírito, o que provocou a criação do que nós chamamos de Arquivo Paralelo, contendo também programas de concerto, recortes de jornais, capas de revistas, folhetos, fotografias. Minha preocupação era disponibilizar o material para que pudesse ser utilizado. Não adiantava ficar segurando para tratar tecnicamente, segundo as últimas descobertas, mas sem leitor. De modo que, mesmo às vezes de forma precária, foi e está sendo utilizado por muitos estudantes e pesquisadores, suponho. Abraão de Carvalho trouxe uma coleção de periódicos preciosa.

 

RBM: Como era?

MRP: Tinha a Revista Musical de Belas Artes, do tempo do Império. Os franceses, alemães, ingleses, italianos e americanos formaram a nossa base. O material sobre a imprensa musical é importante, porque contém muita informação, não apenas sobre os compositores, mas sobre seu tempo, sobre o gosto da época. E formamos uma coleção ímpar, com polcas, lundus, quadrilhas, xotes, modinhas. Acho que até hoje não existe nada que se compare à coleção da Biblioteca Nacional, em geral… E, no nosso caso, naquela época, eu não estava mais sozinha, já contava com um grupo muito dedicado, do qual guardo a melhor lembrança. Eram colaboradores que tinham amor ao que faziam e com muitos dos quais ainda tenho contato, o que para mim é importante. Quero destacar uma pessoa muito especial, que foi minha companheira de trabalho, bibliotecária também: Thereza Aguiar Cunha. Depois de terminar a organização de um arquivo sobre a história da Biblioteca Nacional, ela se juntou a nós. Quando me aposentei, nos anos de 1990, foi quem me substituiu. Thereza faleceu há pouco, deixando muitas saudades.

 

RBM: Depois da formação da equipe, como prosseguiu a organização da Seção?

MRP: Começamos a comprar, de uma editora alemã, a Bärenreiter, que fica em Kassel, as coleções de obras completas de compositores como Mozart, Beethoven, Handel… e também de determinados países, de música britânica, por exemplo, ou, então, de determinada época. Isso compõe o acervo básico numa biblioteca de especialistas e, no nosso caso, único na América Latina! O objetivo era ter um padrão alto, para musicólogos, professores.

 

RBM: A sra. passou depois a ser funcionária da Biblioteca Nacional? 

MRP: Sim. E é oportuno dizer que apenas em 1960, na época da inauguração de Brasília e com a reforma da Biblioteca Nacional, é que a Seção de Música foi reconhecida. Durante nove anos não existíamos oficialmente. E recebíamos correspondência do mundo inteiro…

 

RBM: Como ficou então a situação?

MRP: Fomos transferidos para o prédio da Biblioteca do MEC, que ficara vazio. Ganhamos um andar inteiro, o terceiro, onde a Seção está até hoje. A mudança ocorreu de maneira muito precária, mas ganhamos o espaço e pudemos nos instalar direito. Isso ocorreu graças a uma entrevista que dei ao Jornal do Brasil, publicada em página inteira, em que mostrava a falta de condições em que a Seção se encontrava.

 

RBM: Nesta época, quantas pessoas faziam parte de sua equipe?

MRP: Antes da mudança para o prédio do MEC, com a Thereza, éramos apenas cinco. A partir daí, crescemos. Tínhamos um atendimento incrível. Em um dia eram feitas cerca de 500 cópias xerox de documentos. Naquele tempo não havia outro jeito.

 

RBM: Como prosseguiu?

MRP: Mesmo antes da mudança, as doações começaram a chegar. Marina Lorenzo Fernandez, filha do compositor, foi um exemplo e juntamente com a mãe, levou obras do pai. Guerra-Peixe doou seu acervo, ele mesmo. De Luciano Gallet, recebemos material entregue pela viúva. O pesquisador Vicente Salles, um desbravador da música paraense, autor de inúmeros livros, foi um excepcional colaborador! A viúva de Mignone também fez doações. Houve outras importantes, como de Ayres de Andrade. Depois que morreu, sua biblioteca veio toda para nossa seção. Eu o conheci bem, era um pesquisador muito sério, um musicólogo muito capaz, e sua obra, os livros e também os cadernos, com anotações de pesquisa, estão na Biblioteca Nacional. Outra pessoa que gostaria de destacar é Andrade Muricy.

 

RBM: Por quê?

MRP: Durante muitos anos, foi crítico de música do Jornal do Commercio. Escrevia um famoso rodapé, que fez questão de organizar, encadernar e doar à Biblioteca. É uma fonte de informação importante também sobre a vida no Rio de Janeiro. Além de musicólogo, Muricy conhecia a literatura brasileira como “gente grande”, era advogado e uma pessoa excepcional em termos de caráter e de capacidade de trabalho. O primeiro curso que assisti depois de formada foi sobre estética da música – que não era nada usual naquela época –, ministrado por ele, no Conservatório. Toda a biblioteca dele foi doada para a Nacional. Ficamos inclusive com muita coisa duplicada. Até eu me aposentar, tive um armário cheio de Andrade Muricy, com dedicatória. Não podia jogar aquilo fora…

 

RBM: A sra. conviveu com Francisco Mignone?

MRP: Sim. Mignone frequentava a Seção de Música e me indicou para a Academia Brasileira de Música. Não entrei naquela vez, mas só o fato dele ter feito a indicação já foi muito importante para mim. Depois, quem propôs o meu nome, em 1994, quando entrei para a Academia, foi Cleofe Person de Mattos.

 

RBM: E Villa-Lobos?

MRP: Graças ao prestigio de minha mãe, Maria Olympia de Moura Reis, que tinha trabalhado com ele, aproximei-me de Villa-Lobos.

 

RBM: Como foi isso?

MRP: Villa compunha em papel vegetal e me emprestava os manuscritos. Veja que coisa incrível, eu o vi compondo! Eu ia com meu fusquinha para o Instituto Benjamin Constant, o prédio onde ele trabalhava, e recebia, digamos, três sinfonias. Eu trazia para a Biblioteca, fazia uma cópia heliográfica na Seção de Engenharia do MEC e devolvia, toda semana. Eu ia e vinha com pressa, para ele não mudar de ideia. Villa-Lobos não era fácil. Mas se você tinha a sua confiança…

 

RBM: Que outras histórias a sra. guarda de Villa-Lobos, como ele era?

MRP: Era temperamental, mas era um homem que tinha certa pureza e era mesmo genial. Quem o viu como eu, na rua Araújo Porto Alegre, onde morava, em cima do bar Itahy, na Graça Aranha, compondo com o rádio ligado… inteiramente abstraído…

 

RBM: O que a sra. nos conta sobre o Arquivo Sonoro?

MRP: Foi criado graças a Renzo Massarani, compositor e jornalista, responsável pelas críticas das gravações sonoras do Jornal do Brasil, e que deixou em testamento todo seu arquivo de discos em meu nome, naquela sua candura. Eu sabia que era para a Biblioteca Nacional. Tinha uma filha, Mariana, ilustradora, e um filho, Giulio, professor da UFRJ. Éramos muito amigos, um italiano formidável, uma pessoa encantadora. Entretanto, tivemos muitas dificuldades.

 

RBM: A que a sra. se refere?

MRP: Na década de 1980, já no prédio do MEC é que foi possível conseguir as máquinas para tocar os discos. Mas, até 1990, nunca haviam sido tratados tecnicamente, o material era utilizado de forma precária, porque não tínhamos gente competente para isso. Naquela época não havia o que há hoje, esses projetos com patrocínio. Mas graças a Renzo foi iniciado o Arquivo Sonoro.

 

RBM: E quanto às exposições?

MRP: Sabíamos que era preciso também divulgar o acervo e começamos desde o tempo do Eugênio Gomes e por exigência dele. Foi, aliás, o único diretor da Biblioteca Nacional que nos cobrou exposição, porque já fazíamos por iniciativa própria. Em 1954, fizemos duas exposições: uma com o material da Biblioteca Abraão de Carvalho e outra com a Coleção Thereza Cristina. Os catálogos têm prefácio de Eugênio Gomes e são edições muito bonitas, que enviamos para o mundo inteiro. Depois fizemos exposições que comemoravam efemérides, foram mais de 40 mostras, até 1990. Dentre as que marcaram centenários de nascimento e de morte, é interessante salientar a de Ernesto Nazareth, que foi o primeiro levantamento da obra do compositor. Conseguimos fazer, graças a Eulina, filha dele, que tinha o material todo, me entregou e depois nem quis receber de volta. Disse que estaria bem guardado.

 

RBM: Que outros levantamentos a sra. destaca?

MRP: O da obra de Francisco Braga e também o de Alberto Nepomuceno, que fizemos graças a seu neto. Foi interessante também o catálogo do 4º centenário da cidade, o Rio Musical. Dividimos por bairros, com a música de cada lugar. O Carnaval tinha um capítulo, destacamos também os dias dos acontecimentos históricos e políticos ocorridos no Rio de Janeiro, como a Proclamação da República, falamos da condução, das epidemias… Foi uma exposição grande. É uma documentação que fica, bem curiosa. E o último catálogo foi “Mozart no Rio de Janeiro Oitocentista”, comemorando os 200 anos de morte do compositor. Eu já estava aposentada quando o diretor Affonso Romano de Sant’Anna me chamou para fazer essa exposição.

 

RBM: A sra. então foi curadora da exposição?

MRP: Sim e fiquei muito sensibilizada com isso. Foi um levantamento da realização da obra do Mozart na cidade. Essas exposições eram feitas sempre com a colaboração de indivíduos ou de entidades. Nós tínhamos um bom relacionamento com escolas de músicas, com institutos históricos e com o Museu de Arte de São Paulo.

 

RBM: Como foi sua colaboração com a Biblioteca Alberto Nepomuceno?

MRP: Posso dizer que minha colaboração com a minha Escola me é muito cara, também porque gosto muito das duas funcionárias, a Maria Luiza e a Dolores. Permanecemos em contato. Sempre que pude, transmiti minha experiência e acho que elas fazem um bom trabalho. Mantive também uma amizade por toda a vida com Luiz Heitor que, por sinal, dirigiu a Revista Brasileira de Música, com a qual colaborei por algum tempo.

 

RBM: A sra. também assessorou o Grove’s Dictionary of Music?

MRP: Fui convidada a fazer o verbete sobre bibliotecas, na edição de 1970, por ser chefe da Seção de Música da Biblioteca e também porque tinha muito contato com o mundo exterior.

 

RBM: Dona Mercedes, foram vários projetos importantes. A criação da Seção de Música foi o que considera mais relevante?

MRP: Foi a minha vida – quarenta e tantos anos de dedicação. Estou feliz por ter contado agora esta história.

 

(*) Revista brasileira de Música, v. 23/1, 2010, pp. 181-189.

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